sábado, 5 de setembro de 2009

Cientista mapeia DNA de pelos dos cães


Combinação de mutações em apenas três genes explica grande parte das diferenças de pelagem entre raças domésticas. Estudo revela mecanismo genético de características complexas e pode ajudar em pesquisas sobre doenças humanas, dizem cientistas

Ricardo Bonalume Neto escreve para a "Folha de SP":

O pelo curto do buldogue, o pelo encaracolado do poodle e a pelagem comprida do cocker spaniel podem ser bem diferentes, mas cientistas nos EUA e França descobriram agora que a combinação de apenas três genes é responsável pela variação. Não se trata de mera curiosidade científica. Trabalhos como este dão pistas para o conhecimento de doenças hereditárias no cão e no homem. Foi um trabalho em larga escala. A equipe de vinte pesquisadores coordenados por Elaine Ostrander, do Instituto Nacional de Pesquisa do Genoma Humano, de Bethesda, EUA, recolheu amostras de DNA de mais de mil cães de 80 raças e examinou milhares de sequências do material genético. "Este tipo de estudo não consegue dar informações práticas para donos de cães sobre uma doença, mas ele ajuda muito a avançar o conhecimento científico sobre como estudar características complexas, uma categoria na qual as doenças geralmente se enquadram", disse Ostrander à Folha.

"Nós sabemos que seres humanos e cães têm um grande número de doenças em comum, como epilepsia, doença cardíaca, cegueira, surdez, artrite, lúpus etc. E sabemos que os mesmos genes subjacentes estão envolvidos nelas", afirma a pesquisadora. "Por isso, entender como lidar com o problema de características complexas no sistema canino com certeza vai nos dar lições que podemos aplicar à doença."

Letras trocadas - O objetivo era fazer um estudo de associação envolvendo todo o genoma do cão, cujo sequenciamento foi publicado em 2005 (isto é, o ordenamento das "letras", as bases químicas que compõem o material genético). O novo estudo está disponível no site do periódico científico americano "Science". Nesse tipo de estudo, os cientistas fazem uma varredura da ordem das letras em busca de variações entre os genomas dos indivíduos, em geral de apenas uma letra trocada. A troca de uma letra pode ou não ser significativa para a função do gene, assim como acontece com as palavras. Ao mudar a palavra "contrate" para "contrata", o significado continua similar. Trocar "refina" por "retina", porém, muda muito o sentido.

A grande variedade de pelagens entre as diferentes raças e também em uma mesma raça permitiu um estudo capaz de associar os locais no genoma com letras trocadas com a característica exibida pelo cão -o seu "fenótipo", como os biólogos costumam dizer. A raça que primeiro deu pistas importantes foi o dach-shund, o pequeno cão "salsicha" que no Brasil costuma ser erradamente chamado de "bassê". A equipe vasculhou o DNA de 96 cães da raça de três variedades de dachshund - pelo liso, pelo duro, e pelo duro com "acessórios" (bigode e sobrancelha peluda). Justamente por serem da mesma raça ficou mais fácil achar as diferenças. O segundo conjunto de dados usou o genoma de 76 cães d'água portugueses, a mesma raça de Bo, a cadela presenteada pelo presidente dos EUA, Barack Obama, a suas filhas. E o terceiro conjunto de dados foi obtido com a busca dos genes da pelagem em 903 cães de 80 raças variadas.

Populações fechadas - "O aspecto único do modelo do cão é o grande número de raças, isolados genéticos, isto é, populações fechadas que não são permitidas cruzarem entre si. Cada uma dessas raças dá um retrato do genoma do cão, contendo diferentes combinações de genes que produzem animais saudáveis e reproduzindo", disse à Folha outro autor do estudo, Karl Gordon Lark, da Universidade de Utah. Lark tem uma fêmea, Mopsa (da mesma raça de Bo, a "primeira cachorra" americana), que também doou sua amostra de DNA para o estudo sobre a variação de pelagem. "Cada combinação resulta em um diferente fenótipo selecionado para tamanho, morfologia [forma] e comportamento", explica Lark. "Em um artigo no periódico "Genetics" nós mostramos como essas diferenças podem ser usadas para identificar locais genéticos para comportamento e longevidade, assim como morfologia."

Estudo ajuda a explicar longevidade - O trabalho de Lark e Ostrander sobre pelos pode trazer também uma explicação sobre por que cães grandes geralmente vivem menos que os pequenos. Segundo os cientistas, há uma semelhança entre os mecanismos que determinam pelo e características ligadas à longevidade. Os genes que explicam a maior parte da diversidade na pelagem canina são três, conforme mostra seu trabalho. O FGF5 determina se o pelo é curto ou comprido, o RSPO2 indica presença de "acessórios", e o KRT71 dá o grau de "encaracolamento". Para todos há uma razão. O KRT71, por exemplo, atua na produção de uma proteína dos pelos, a queratina 71. A combinação dos três genes produz sete tipos básicos de pelagem.

O pelo curto de um boxer vem de ele ter versões ancestrais dos três genes. O pelo longo com bigode e sobrancelha peluda de um Lhasa Apso surge de seus FGF5 e RSPO2 mutantes, e do KRT71 na forma selvagem, ancestral. O pelo longo e não encaracolado do cocker spaniel surge do FGF5 mutante e dos outros dois ancestrais. Já um cão d'água português ou um poodle têm as três formas dos genes mutantes. Acontece, porém, que o isolamento genético entre as raças acabou criando diferenças que vão além da aparência. "Ao desenvolver uma raça, os criadores selecionam certos genes, regulando tamanho ou pelagem, que também regulam muitas outras coisas no animal" afirma Lark. São genes básicos. O gene ligado ao tamanho do pelo, IGF1, também está envolvido no metabolismo de insulina - e da longevidade - em muitos organismos. Os genes FGF5 e RSPO2 também regulam processos celulares que afetam a fisiologia e o crescimento do indivíduo. Com isso, os cientistas ganham novas informações para estudar como importantes genes regulatórios interagem com outros para mudar o "funcionamento" do animal, afetando sua saúde e sua longevidade.

(Folha de SP, 31/8)

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