domingo, 29 de novembro de 2009

Use e Abuse - Por Milena Godolphin

CORPOS NO SÉC. XXI – ‘USE E ABUSE’



No ano de 2008, a publicidade acima exposta foi veiculada em outdoors de todo o país, representando a marca de roupas infantis, Lilica Ripilica. Ela apresenta em seu discurso visual e escrito valores crônicos na atual sociedade da informação e consumo. A modelo infantil aparece maquiada e em pose geralmente recorrente em propagandas de adultos, nas quais mulheres representam a sensualidade para agregar valor ao produto oferecido, mesmo que este nada tenha de sexual. A imagem do corpo, principalmente o feminino, é constantemente aplicada em publicidades como representante da sexualidade e como objeto que agrega valor ao produto vendido. Neste caso, a imagem do corpo infantil, adjacente ao texto, insere um valor sensual à publicidade, inadequado e nocivo a todo o público ao qual se dirige.
É explícita a ‘adultificação’ da criança em questão, através da pose, gestos e roupa. Os termos ‘use’ e ‘lambuze’ são carregados de valor sexual na nossa cultura. Quando procuradas na internet essas palavras levam principalmente a conteúdos pornográficos e remetem à expressão ‘use e abuse’, obviamente abusiva; ainda mais estando ligada a imagem de uma criança. Não fica claro o que o texto oferece. Use e abuse do doce, da roupa ou da criança? Na melhor das hipóteses da roupa. O que significa que a publicidade tem mensagem direcionada para as crianças, apesar de estar acessível a toda a população. Isso por si só já vai contra as leis brasileiras, que a partir de uma tentativa de regulamentação pela CONAR, estabeleceu em 2006 a proibição das propagandas com mensagens diretamente comunicantes às crianças. No mundo ocidental, tem sido considerada uma hipossuficiência presumida das crianças na relação com o consumo. As crianças são pessoas em desenvolvimento e que têm carência de experiências, julgamento e autonomia, ou seja, sofrem uma vulnerabilidade exacerbada às influências que recebem de fora. E a mídia, por ser vista como uma instituição de prestígio, detém grande poder de influência na veiculação de produtos aos consumidores em potencial. Por isso, em muitos países é regulamentada e proibida a publicidade durante programas infantis ou até mesmo de qualquer produto para crianças.
Até o século XIX a infância não era respeitada como uma fase de desenvolvimento que requer cuidados especiais e proteção. Na sociedade industrial, os corpos infantis eram explorados tais como os dos adultos, seguindo a disciplina normalizadora exercida pelos poderes da época, que estimulavam os corpos dóceis, úteis e produtivos. Hoje em dia, na sociedade de consumo em que vivemos, os corpos sofrem influência dos jogos de poder tal como naquela época, entretanto servem aos interesses do mercado de outra forma. Se antes, tinham que ser produtivos e úteis, hoje tem que ser consumidores. E também na nossa sociedade, os corpos infantis entram no jogo. A infância continua não sendo respeitada, através de uma estimulação massiva da indústria do consumo e da sedução. Na época da disciplina industrial o controle sobre os corpos era feito de maneira repressiva. A Sexualidade, principalmente nas crianças, era duramente combatida pelas instituições de poder (familiares, religiosas, etc.), sendo alvo de vigilância e punição social. Como contra-efeito dessa cultura, em meados da década de 1960, uma nova geração propõe revisões sociais, sendo a liberação do corpo sexual um dos principais vieses da luta. De fato, houve desde então uma mudança radical nos ‘modos de ser’ corporais e subjetivos da população. Entretanto, estamos longe de experimentar a liberação da sexualidade – modelada e controlada pelo estímulo consumista do corpo, a pornografia. A sexualidade que antes sofria um tipo de controle-repressão sofre hoje um controle-estímulo. “Porque o novo tipo de poder se infiltraria nos organismos humanos sob a forma de uma vigorosa estimulação constante, semeando os apetites mais diversos e incitando sua urgente consumação.” (SIBILIA, 2009)
O fetichismo da mercadoria impera numa sociedade pautada pelo consumo e pelo marketing, ainda que baseada em conceitos antigos de liberdade e igualdade. A nova matriz cultural imaginária é a moda. Descobre-se cada vez mais, que tudo pode ser vendido, tudo é mercado. E o princípio do mercado é atingir a todos. Neste sentido, as crianças devem, como cidadãs, ter o direito igual e a liberdade de consumir. Há uma exploração econômica de todos os aspectos, inclusive da sexualidade e da erotização. Junto a isso uma liberdade descontrolada no estímulo ao consumo, ou seja, na publicidade. O resultado dessa união é uma exposição indiscriminada dos corpos e subjetividades às opções oferecidas pelo mercado. Como o estímulo à erotização vigora na sociedade, se refletindo na publicidade, os corpos são cada vez mais objetificados e sexualizados, dualidade básica na composição ideológica da pornografia. A escritora e educadora Jean Kilbourne diz: “O sexo na publicidade tem a ver com a banalização do sexo e não com a sua promoção, tem a ver com narcisismo e não com promiscuidade, com consumo e não com conexão. O problema não é ser pecado, e sim artificial e cínico.”
Essa condição de um materialismo exacerbado e uma objetificação geral atinge também as crianças, como pode ser visto na propaganda aqui analisada. Neil Postman, teórico crítico de mídia e cultura da Universidade de Nova York, afirma que “pode-se seguramente presumir que a mídia desempenhou importante papel na campanha para apagar as diferenças entre sexualidade infantil e adulta”. Uma vez que as crianças têm potencial consumidor, são cada vez mais incitadas a partilhar do mundo adulto. E é justamente com ele que a publicidade em questão lida, mesmo que não fosse sua intenção. O imperativo ‘use e se lambuze’ sugere através da identificação um auto-erotismo, conceito estimulado na sociedade através apelo narcisista e hedonista de culto ao corpo, e no viés da objetificação a expressão chega ao extremo de incentivar a pedofilia.
A abordagem da sexualidade foi tradicionalmente desenvolvida através de um controle majoritariamente masculino. As mulheres foram mantidas alijadas de participação em muitas esferas sociais até o século XX, como por exemplo, ter cargos de poder em instituições religiosas, políticas e mercadológicas. Desta forma, a construção da estética pornográfica, que é a estética sexual difundida massivamente, sofreu menos influência direta do comando de mulheres, o que pode delinear uma tendência unilateral geral na abordagem. A pornografia é uma estética, uma abordagem do sexo que pouco tem a ver com ele, não se trata aqui de filme pornô apenas, mas da estética pornográfica e erótica, que hoje apresenta aspectos violentos e banalizantes ao abordar o sexo, principalmente sobre os corpos e subjetividades das mulheres, maiores representantes da sexualidade nessa abordagem. Essa objetificação dos corpos selada na pornografia se reflete nas relações pessoais da sociedade, expondo os corpos, principalmente de mulheres e crianças, a um risco real e iminente em sua integridade física e psicológica, constantemente confrontadas sexualmente nas ruas. A publicidade da Lilica Ripilica, aqui analisada, é consoante com essa objetificação, entretanto não é surpreendente. A estética atual da violência e pornografia é refletida em muitas esferas da produção criativa humana, não só na publicidade, mas também na música, filmes e outras manifestações artísticas. Movimentos como o hiphop, o funk e o arrocha, entre outros, divulgam uma violência sexual que não é um movimento isolado. Surge espontâneamente em vários lugares do mundo, como reflexo de um apelo vulgar e nocivo à saúde e integridades física e moral dos corpos viventes. Cultura que não pode ser dissociada do comportamento violento aos quais a população ao mesmo tempo promove e está sujeita nas ruas.

Milena de Miranda Godolphim
Cinema e Audiovisual – 20730154-5

Bibliografia utilizada:
COSTA, Jurandir Freire. O Vestígio e a Aura.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder.
SIBILIA, Paula. O Homem Pós-orgânico.
SIBILIA, Paula. O Corpo Reinventado Pela Imagem.
http://www.alana.org.br/banco_arquivos/arquivos/docs/acoes/marisol_lilicaripilica/Representa%C3%A7%C3%A3o_Lilica_Repilica.pdf

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