sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Por Tsai Yi Jing

"8 Anos e Anoréxica"




O documentário “8 Anos e Anoréxica” (Dana: The 8 Years Old Anorexic), transmitido pelo canal Discovery Home & Health, retrata a história de Dana, uma menina britânica de 8 anos que é obcecada em perder peso. Ela é internada na clínica de reabilitação para jovens anoréxicas, Rhodes Farm Clinic, por 12 semanas. Na clínica, as pacientes e suas famílias realizam sessões de terapia para entender as razões que as conduziram à anorexia e evitar o retorno dos maus hábitos alimentares.

A menina conta que a princípio só queria ter uma alimentação saudável, assim deixou de comer doces e junk food e se tornou vegetariana. Depois, ficou obsessiva com exercícios para gastar as calorias que ingeria e quando ia ao supermercado com a mãe, lia os rótulos de tudo para saber o que a deixaria mais magra. Dana chegou a parar de comer e precisar ser alimentada por uma sonda.

Segundo a mãe de Dana, um dos momentos mais críticos foi quando ela deitou na cama, começou a chorar e disse que estava muito cansada, por ter feito atividade física. A mãe pediu para a filha dar um tempo e Dana respondeu que não podia e que tinha de fazer outra sessão de exercícios. “Mamãe, estou tão cansada, o que eu posso fazer?”. Ela estava se torturando com oito anos de idade, disse a mãe em um depoimento.

Esta preocupação com a imagem geralmente atinge as meninas durante a adolescência, em que há, de certa forma, um não reconhecimento do corpo, já que este está em constante transformação. No contexto social da cultura somática, em que se privilegia o culto ao corpo, a mídia bombardeia os indivíduos com informações sobre como perder peso, se manter em forma e ter uma vida saudável; e imagens do corpo perfeito, que deve ser tido como o modelo a ser seguido. Estas são as metas a serem alcançadas por um indivíduo disciplinado.

Dana, apesar da sua pouca idade, já sabe calcular as calorias que ingere e tem consciência de que, quando faz uma refeição, deve gastar as energias consumidas, surpreendendo outras meninas mais velhas da clínica. Em um depoimento do seu irmão, ele diz que a menina, após a janta, corre pela casa, sobe e desce escadas e pula corda, para compensar o que comeu. Às vezes essas atividades duravam horas, e “quanto mais tempo ela praticava exercícios, mais feliz ela ficava”, disse sua irmã.

A noção de fitness, principal virtude da bioascese, está inserida na sociedade contemporânea e sendo disseminada entre crianças. Um artigo do jornal Los Tiempos, publicado no fim de 2008, indica que nos últimos anos a anorexia, além de afetar adolescentes, também tem atingido cada vez mais crianças. Segundo o artigo, “a adolescência começa cada vez mais cedo na sociedade, e o mesmo ocorre com estes transtornos”.

Atualmente, o ato de se privar da comida tem um significado diferente da privação de antigamente. A ascese da Antiguidade implicava em uma dietética (alimentar, sexual, etc) e visava à elevação da alma, superação e o desenvolvimento das qualidades morais. Deborah Lupton diz que “a renúncia da comida torna-se um símbolo de ascetismo, “leveza” e santidade, não à procura da figura perfeita”. Já a prática moderna da ascese corporal (bioascese) exige a disciplina, com objetivo de reduzir - ou eliminar - hábitos não saudáveis, almejando sempre o modelo de corpo cultuado pela cultura somática: o magro, saudável, musculoso e siliconado.

Tais práticas de bioascese enfatizam os procedimentos de cuidados corporais, médicos e higiênicos na construção das identidades pessoas, que no contexto atual, é formada pela a imagem corpórea do individuo, a bioidentidade. Jurandir Freire diz que “referir o sentimento de identidade ao corpo significa definir o que somos e devemos ser, a partir de nossos atributos físicos”. Este novo tipo de formação do sujeito, que se auto-controla e auto-vigia, tem como característica fundamental a auto-peritagem. O indivíduo que “se pericia” tem no corpo e no ato de se periciar a fonte básica da sua identidade. Dana é uma menina que se auto-pericia, e se levarmos em conta sua idade, a peritagem é em excesso. O conceito de auto-governo baseia-se em recursos reflexivos: a disciplina sobre o corpo irá refletir em uma auto-realização do indivíduo, o que é exemplificado no discurso da irmã de Dana, quando ela fala que quanto mais exercícios a menina fazia, mais ela ficava feliz.


Na clínica em que Dana estava internada, as meninas deveriam se alimentar normalmente, comendo uma porção inteira e sem deixar sobras. Dana seguia esta regra e se alimentava sadiamente. Algumas meninas diziam que isso poderia ser uma tática para ela conseguir alta mais cedo: mostrar que estava recuperada, para voltar à sua casa e continuar com os mesmos hábitos de antes. Os indivíduos seguem uma bioascese rigorosa durante a semana e esperam o fim de semana para se entregar desenfreadamente aos prazeres e desejos reprimidos. “O cuidado de si e o descuido insensato, bioascese e descontrole pulsional são dois lados da mesma moeda” (ORTEGA, Francisco, 2008). O caso de Dana é aplicável a esta lógica, mas de uma forma inversa: ela come durante a semana e deixar de comer às sábados e domingo. Em um dia livre da clínica, Dana sai para almoçar com a mãe. Na hora da sobremesa, um bolo de chocolate, Dana tenta comer tudo, mas acaba não conseguindo. Como a regra da estabelecida é terminar toda a refeição, ela se questionava sobre seu fracasso por não cumprir a regra da clínica. O sentimento de culpabilidade é o mesmo, tanto para o anoréxico em reabilitação (no caso, Dana se culpa por não ter acabado de comer o bolo), quanto para aquele que come em excesso, cuja conseqüência extrema é a bulimia.

No documentário, a mãe de Dana fala que sua filha era uma menina ativa, praticava esportes e que ela não é o tipo de menina que se espera que irá ter um distúrbio alimentar, e isto que a pegou de surpresa. Praticar atividades físicas, no contexto atual, é um ato exemplar. Para Jurandir, os atletas são os “normais” (o que dão mostras da vontade forte), em oposição aos fracos, os estultos (incompetentes para exercer a vontade do domínio do corpo e mente). Ortega classifica os anoréxicos como “estultos desregulados”, aqueles que não podem moderar o ritmo ou a intensidade das carências físicas ou mentais.

A cultura do psicológico e da intimidade, da qual prevalece a subjetividade e o sofrimento é experimentado como conflito interior, se contrapõe à cultura contemporânea das sensações e do espetáculo (fundamentada no discurso científico), cujo mal-estar tende a se situar na performance física ou mental falha. No documentário, a anorexia é referida dentro dos conceitos da cultura do psicológico, tentando buscar as causas subjetivas do distúrbio alimentar, como possíveis problemas no colégio ou com amigos. Essa análise psicológica carece de linguagem científica, fortemente empregada nos dias atuais.

A noção de fitness apresenta-se como a cura universal, porém este fenômeno é paradoxal. A obsessão pela saúde e da disciplina corporal constante geram a displicência corporal, como os casos extremos de sedentarismo e alto consumo de fast food. A anorexia, freqüentemente vinculada à idéia de auto-policiamento do corpo – característica da cultura somática -, é vista como um desvio do fitness, uma estultícia.

Primeira parte do documentário:


Bibliografia:

BEZERRA, Benilton. “O ocaso da interioridade e suas repercussões sobre a clínica”. In: PLASTINO (org.). Transgressões. Rio de Janeiro: Ed. Contracapa, 2002; p. 229-239.

COSTA, Jurandir Freire. “A personalidade somática de nosso tempo”. In: O vestígio e a aura: Corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro: Ed. Garamond, 2004; p. 185-202.

ORTEGA, Francisco. “Do corpo submetido à submissão ao corpo”. In: O corpo incerto: Corporeidade, tecnologias médicas e cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Garamond, 2008; p. 17-53.

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