domingo, 6 de dezembro de 2009

MULHER 2.0: O FISICULTURISMO FEMININO - Por Ivanilma Gama




1. O CULTO AO CORPO: O FISICULTURISMO, SÍMBOLO MÁXIMO

A procura por um corpo perfeito advém desde da Antiguidade clássica, no qual até as obras de artes refletiam esse anseio social. Contudo, foi no século XX que o corpo adquire valor de sagrado. O culto ao corpo possui seu eixo central na preocupação com as formas e volumes do corpo-máquina.
Nos anos 1980 esse culto adquire o seu apogeu, assim como afirma Courtine: “os anos 80 conheceram um desenvolvimento considerável do mercado do músculo e do consumo de bens e serviços destinados à manutenção do corpo” (1995, p. 84). A necessidade de adquirir um corpo saudável, liso e perfeito passou a ser vista como um “estilo de vida”. Nos anos 80 essa geração foi denominada yuppies, nos anos 90 foi a Geração Saúde.
Regidos por toda essa esfera de culto massivo ao corpo, surgi o body-building, símbolo máximo dessa idolatria corporal. Nascido na Europa no século XIX adquiriu força nos Estados Unidos durante o século XX, principalmente nos anos de 1980, se destacando por ser uma prática esportiva1 que visa o desenvolvimento muscular tanto na definição quanto na harmonia, proporção simétrica e estética. As competições ocorrem os competidores se apresentam, através de uma coreografia para exibição dos músculos e detalhes anatômicos, dentro de micro trajes na qual avaliam a performance corporal, estética e beleza.
Numa sociedade do espetáculo na qual a tirania da visibilidade coloca o ambiente privado e o público no mesmo patamar, o corpo do body-builder torna-se uma marca. De acordo com Courtine, “ele é um dos modos privilegiados de visibilidade do corpo no anominato urbano das fisionomias” (1995, p. 83), ou seja, o corpo do fisiculturista funciona como meio de se torna visível socialmente.
O fisiculturismo destacou-se, desde de seu surgimento, como um esporte destinado ao universo masculino como sinônimo de virilidade e força. Alexis Stakhanoff, Johny Weissmuller e Arnald Schwarzenegger são os maiores representantes desse grupo de atletas. Entretanto, com a inserção feminina em ambientes predominado por homens, o body-building presenciou a inserção de várias mulheres nesse esporte.
O que se pretende é investigar se esse paradigma está relacionado a um novo conceito de feminilidade construído a partir desse culto ao corpo.

2. O CORPO FEMININO E SUAS TRANSFORMAÇÕES

O conceito de feminilidade aceito socialmente, apoiado pela medicina e judicialmente durante o século XIX e parte do século XX, pautava-se na imagem da submissão, fragilidade, passividade e beleza. Além disso, a mulher era o ser no qual a principal função era a reprodução e a dedicação ao lar, deste modo, atividades físicas na qual exigissem esforço mais intenso eram reprovados para esse sexo, de acordo com Lessa “até o final dos anos 70 os esportes de força, como o halterofilismo e o fisiculturismo, eram condenados para as mulheres, vistas como frágeis e vulneráveis em função de sua capacidade reprodutora” (LESSA, 2007, p. 109).
Inserido no contexto romântico, no século XIX o corpo tido como objetivo para as mulheres era os das bailarinas. Com a ascensão do cinema e suas estrelas no século XX, o corpo almejado era os das atrizes do cinema hollywoodiano. Durante os anos 1980 com o crescimento da idolatria ao corpo e a incorporação de que a saúde está intimamente relacionada à prática de exercícios físicos e, logo, estar à parte desse sistema é moralmente condenado, acompanha-se a uma adesão das mulheres à prática do halterofilismo e o fisiculturismo.
Considerando a visão de corpo definida pelo antropólogo David Le Breton (BOTELHO apud LE BRETON, 2009, p. 108) em que o corpo, na sociedade contemporânea, tem sido visto como “rascunho”, ou seja, deve ser constantemente melhorado e aprimorado, pode-se se perceber que o body-building no universo feminino procura findar o estereotipo de fragilidade já que no mundo dos músculos quem se sobressai, teoricamente2, é aquele/a que possuir atributos anatômicos mais acentuados. Courtine (1995, p. 82) evidencia também um suposto nivelamento dos sexos na prática do body-building:
Deixou de ser privilégio de um sexo e o signo esmagador de sua dominação sobre o outro: doravante não há mais sexo frágil. A reivindicação muscular democratizou-se, as práticas do body-bulding tendem a se generalizar e a potência anatômica se exibe como um espetáculo permanente, obsessivo, universal.

As práticas desse esporte acentuam as formas anatômicas do corpo, muitas vezes até descaracterizado do que se entende como real, desta forma, o uso de medicamentos e produtos que aumentam a massa muscular tem ganhado cada vez mais espaço. Botelho (2009, p. 105-107) destaca que muitas mulheres usam hormônio masculino como a testosterona e anabolizantes o que acaba em lhes dar alguns traços masculinizados. Isso se justifica, de acordo com Botelho (idem, p. 116), pela a recompensa adquirida no final: “a gratificação pessoal e um prazer do corpo”3.

“O risco é parte do cotidiano dessas atletas e a disponibilidade de uma série de produtos no mercado, além do fácil acesso a eles, compõem o quadro de riscos experimentados por essas mulheres no desejo de transformarem seus corpos para fazerem parte do universo do fisiculturismo. Os riscos não são percebidos como riscos ou são minimizados e consentidos frente a um objetivo a ser alcançado.”

Além disso, o ideal de promoção individual difundido nos Estados Unidos torna práticas como o uso desses medicamentos e produtos algo justificável já que “a beleza é um capital, a força, um investimento” 4, sendo assim, há necessidade de mantê-los já que ambos são valores de troca no âmbito social5.
Faz-se necessário salientar que, muito além do valor financeiro, o que se congrega entre as fisiculturistas é a realização pessoal. Para estas, a busca pela felicidade está diretamente ligada à imagem estética conseguida através do suor, exercícios pesados, dores, dietas rígidas e riscos corridos em torno do objetivo de se torna “puro músculo”, assim como salienta Botelho(2009, p. 117).

Pode se afirmar, assim, que tal prática representa, para essas mulheres, uma realização pessoal e, nesse sentido, uma possibilidade de atribuir sentido à vida. O fisiculturista pode ser considerado a hipérbole do ódio à gordura na sociedade moderna e esse ódio o transforma em uma máquina de produzir músculos, a qualquer custo, daí os riscos corridos.


3. Considerações Finais

Cabe aqui destacar que a visão de corpo perfeito tende a modificar tanto coletivamente quanto individualmente e que nem sempre essas duas vertentes caminham em harmonia. Os meios de comunicação vendem diariamente corpos femininos perfeitos: esguios, delicados, quase sobrenaturais. Mas mais do que isso vendem a total aversão ao “não-saudável”, ou seja, ao gordo, ao magro demais, enfim, o contrário àquilo que está sendo disseminado.
As praticantes do fisiculturismo podem ser entendidas com um grupo que se insere nesse contexto, mas levam esse culto ao corpo ao extremo, assim com Botelho (2009, p. 116) salienta em sua pesquisa.

Notei que, entre as atletas de fisiculturismo o padrão estético mais corrente na sociedade hoje não é um projeto para elas. O que não significa que essas mulheres não seguem um padrão também estabelecido pela sociedade, já que a busca por músculos salientes e uma hiper definição corporal, parece ser mais ligado ao ódio que a sociedade vem cultivando pela gordura e a necessidade de se controlar o corpo e molda-lo. Existe uma necessidade de se criar uma marca de diferenciação, de se destacar como corpo dentro desse grupo, em busca de status e de diferenciação.

O conceito de feminilidade adquiriu novas formas; formas estas inseridas nesse contexto de transformação corporal ligada ao paradigma da purificação total do corpo na busca do “belo”; um belo tão acentuado que acaba por perde a sua forma humana, mas o qual todos devem idolatrar.





Notas:

1. Tomou-se por base a classificação do Fisiculturismo (Body-building) como uma prática esportiva pela definição dada pela Confederação Brasileira de Culturismo e Musculação.

2. A expressão “teoricamente” foi utilizada já que as atletas femininas desse esporte destacam a falta de patrocínio e incentivo a essa categoria do halterofilismo e o fisiculturismo. Muitas delas não conseguem se manter somente com a prática do esporte, tendo que procurar outras atividades para sustento financeiro e a prática do esporte.

3. COURTINE, Jean-Jacques. “Os stakhanovistas do narcisismo: Body-building e puritanismo ostentatorio na cultura americana do corpo”. In : SANT´ANNA, Denise (Org.). Políticas do corpo. São Paulo: Estação Liberdade, 1995. p. 99.

4. COURTINE, Jean-Jacques. “Os stakhanovistas do narcisismo: Body-building e puritanismo ostentatorio na cultura americana do corpo”. In : SANT´ANNA, Denise (Org.). Políticas do corpo. São Paulo: Estação Liberdade, 1995. p. 98.


5. O valor de troca aqui utilizado é similar ao que trata Courtine quando se refere às primeiras mulheres que participavam de concursos de Miss América. “A exposição pública de seus corpos permite a algumas mulheres uma maior mobilidade social e profissional” (1995, p. 98). Pode-se dizer que contexto do fisiculturismo há uma certa mobilidade social para a categoria feminina, assim como relata a pesquisa de Botelho (2009, p. 117): “O corpo é visto por essas mulheres, não só como um instrumento de trabalho, o corpo é percebido como o próprio capital, como um meio de ascender socialmente. (...) Esse modelo, adotado pelas fisiculturistas em seu mais alto grau, torna-se através do sacrifício, da dor, da rotina de treinamento, das dietas, da alimentação rígida, um meio de se obter sucesso e prestígio na carreira e na vida pessoal.”








REFERÊNCIAS:

BOTELHO, Flávia Mestriner. Corpo, risco e consumo: uma etnografia das atletas de fisiculturismo. Revista Habitus: revista eletrônica dos alunos de graduação em Ciências Sociais - IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 104-119, jul. 2009. Semestral. Disponível em: . Acesso em: 04 dez. 2009.

COURTINE, Jean-Jacques. “Os stakhanovistas do narcisismo: Body-building e puritanismo ostentatorio na cultura americana do corpo”. In : SANT´ANNA, Denise (Org.). Políticas do corpo. São Paulo: Estação Liberdade, 1995. p. 81-114.

LESSA, Patrícia; OSHITA, Tais Akemi Dellai; VALEZZI, Mônica. Quando as mulheres invadem as salas de musculação: aspectos bissociais da musculação e da nutrição para mulheres. CESUMAR,v. 09, n.02, p. 109-117, jul./dez. 2007

SIBILIA, Paula. O show do eu: A intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

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