sábado, 5 de dezembro de 2009

Dr. 90210 - Por Rebeca Cádimo



Desde o ano de 2004 o programa Dr. 90210 tornou-se sucesso de audiência no E! Entertainment Television. Trata-se de um reality show que exibe a rotina diária dos principais cirurgiões plásticos que exercem sua função na cidade de Beverly Hills. O número que compõe o nome do programa (90210) se refere ao CEP da cidade de Beverly Hills. No Brasil, o seriado ganhou notoriedade a partir de 2007 quando começou a ser exibido pela emissora Rede TV, nomeado como Dr. Hollywood.




Dentre os cirurgiões mais populares, está o Dr. Robert Rey, de origem brasileira que se mudou para os EUA aos 12 anos após ser adotado, se formou em medicina pela Faculdade de Harvard com especialização em cirurgia plástica com o mínimo de cicatriz, ou seja, suas operações são responsáveis por deixar a cicatriz o mais imperceptível possível.

Muito além de exibir transformações corporais, o reality show “invade” a privacidade dos cirurgiões participantes, mostrando seus familiares e suas atividades rotineiras fora das clínicas de estética, e também faz um resumo da vida dos pacientes, que explicam os porquês de quererem fazer a cirurgia. E o que se percebe, é que nem sempre esses porquês são motivados por causas médicas/patológicas. Na maioria dos casos o que motiva a cirurgia são “defeitos” estéticos (sob a ótica dos pacientes) que comprometem a auto-estima e incomodam o olhar, comprovando o que afirma o neurocientista Robert Lent em entrevista a Veja: “a medicina está deixando de ser curativa para ser cosmética”.



Esse incômodo referente a uma motivação psicológica tem suas raízes nas características da sociedade contemporânea. Vivemos um excesso de transformações, que alcançaram inclusive os mecanismos de poder. O corpo atual não se encaixa mais nos dispositivos disciplinares na forma de controle-repressão. Segundo Foucalt, o poder se reconfigurou e hoje possui a forma de controle-estimulação, respondendo assim através da exploração econômica. As formas de estímulo são as mais variadas, mas, a grande maioria, possui uma característica em comum: a veiculação através da mídia.

O fator imagético é extremamente valorizado em detrimento da subjetividade interiorizada do homo psychologicus do século XIX e início do XX. Atualmente, não basta se sentir bem, o bem-estar precisa ser externado através da aparência para ter valor. “Comportar-se de modo a exibir uma imagem saudável significa apresentar-se, a si e aos demais, como sujeito independente, responsável, confiável, dotado de vontade e auto-estima.(BEZERRA, 2002:234)”

É o corpo, e mais especificamente seus aspectos visíveis, o principal meio de exibição do EU. O que em séculos anteriores possuía a conotação de falso; hoje, a aparência é o lugar em que o verdadeiro EU se encontra.

O cuidado com a aparência não é preocupação somente dos pacientes do reality, o Dr. Rey, por exemplo, é um metrosexual assumido e possui rotinas rigorosas de treinamentos físicos para manter a boa forma; e sua esposa, mesmo já tendo engravidado por duas vezes, é extremamente magra e já se submeteu ao bisturi estético.

Outro fator a destacar no seriado é que, diferente da maioria dos programas e propagandas de transformações com cirurgias plásticas, as imagens de momentos da cirurgia são veiculados. Bem sabemos que existe uma prévia edição e os trechos exibidos são meticulosamente selecionados, mas ainda assim imagens fortes (de cortes, de processos mais violentos como a lipoaspiração, de implantes de silicone) são exibidas. Neste ponto, a produção se destaca das demais relacionadas a cirurgia plástica, principalmente quando se trata das estéticas, que vendem a cirurgia como uma técnica asséptica e virtualmente indolor.



Partindo do pressuposto que a maior parte dos pacientes do programa já o tenham visto anteriormente, afirmamos que eles conhecem parte do processo relacionado ao sofrimento a que terão que se submeter. E o que merece destaque aqui é que isso em nada impede que as agendas dos cirurgiões plásticos de Beverly Hills estejam sempre lotadas, que pacientes esperem por meses para marcar uma consulta e que eles, os médicos, até rejeitem cirurgias.

Isso se deve ao crescente desejo de distanciamento do corpo analógico, obsoleto, e, portanto, carregado de defeitos. A disseminação e crescente sucesso dessas técnicas artificiais de embelezamento nos mostram o caráter modelável que o corpo adquiriu e a projeção desses cirurgiões como artistas, escultores de corpos belos, de imagens exemplares para serem consumidas e reproduzidas.

Esse movimento procura contrapor o “ritmo natural” da vida, em que o corpo nasce, se desenvolve, amadurece e envelhece. É justamente esse envelhecimento um dos principais motivos de busca por técnicas cirúrgicas que retardem suas conseqüências visíveis. Na verdade, a gama de opções de mecanismos que previnem ou retardam o envelhecimento extrapolam os centros cirúrgicos, alcançando as farmácias, as lojas de cosméticos, os salões de beleza e muitos outros espaços que facilitam o acesso dos corpos insatisfeitos com suas aparências às técnicas aperfeiçoadoras.



O que se requer no contexto da sociedade do espetáculo em que estamos inseridos, é o constante upgrade dos corpos. Estes precisam ser modelados e remodelados sempre que não corresponderem aos padrões de beleza atuais. Esse caráter exigente presente na “nova” subjetividade dos corpos que não se encontra mais em seu interior, caracteriza o que pode ser considerado como uma tirania da visibilidade; em que o EU (antes natural e intrínseco) passou por modificações e exige a visibilidade para fazer sentido. Prova disso é a disposição das pacientes do reality por mostrar seus defeitos que serão corrigidos e aspectos pessoais de suas vidas, propondo-se assim como modelos a serem seguidos. Uma vez mais ressaltamos que não basta ser aperfeiçoada, é necessário fazer-se visível.



A partir dessas considerações, entendemos que o sucesso do programa e das agendas lotadas dos cirurgiões plásticos se deve a uma conjectura de desejo de evasão de privacidade, de tornar-se uma subjetividade visível; e também de desejo de tornar os corpos digitalizáveis, flexíveis ao aperfeiçoamento constante, às reduções e possíveis apagamentos dos efeitos (aterrorizantes) da idade natural, orgânica.

Cabe por fim ressaltar que, o programa Dr. 90210 traduz a realidade dessa prática em Hollywood, mas é o Brasil o país recordista em cirurgias plásticas. “A estatística é de que no ano 2000 aproximadamente 350.000 pessoas tenham se submetido ao bisturi por razões puramente estéticas, passando a frente dos Estados Unidos, tradicionais campeões nesta área”(http://www.brazilmedicaltourism.com). Essa é a melhor prova do quanto nossos corpos têm sido afetados pelo bisturi estético.

Bibliografia:

- BEZERRA, Benilton. “O ocaso da interioridade e suas repercussões sobre a clínica”. In: PLASTINO (org.). Transgressões. Rio de Janeiro: Ed. Contracapa, 2002; p. 229-239.
- SIBILIA, Paula. O show do eu: A intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
- FOUCAULT, Michel. “Poder-Corpo”, In: Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1979; p.145-152.
- SIBILIA, Paula. “Ser humano” e “Natureza”. In: O homem pós-orgânico: Corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Ed. Relume Dumará, 2002.
- LENT, Roberto. “Não é mais ficção”. (Entrevista realizada por Daniela Pinheiro). Revista Veja. São Paulo, 27 de setembro de 2006.
- SIBILIA, Paula. “De Frankenstein a Pigmalião: O ‘corpo perfeito’ como uma obra de cirurgiões e designers”. In: SPANGHERO, Maíra (Org). Corpo Versão Beta: Ensaios sobre dança, corpo e computação. São Paulo: PUC-SP, 2009.
- SIBILIA, Paula. “A digitalização do rosto: Do transplante ao PhotoShop”. Dossiê “Estéticas da Biopolítica”, revista Cinética, São Paulo, 2007.


Sites visitados:
- http://www.brazilmedicaltourism.com
- http://www.redetv.com.br/portal/drhollywood/dr_rey
- http://www.eonline.com/on/shows/dr90210/

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