sábado, 5 de dezembro de 2009

BUG NO SISTEMA: Controle e Resistência - Por Anderson Moreira

Link para o vídeo : http://www.youtube.com/watch?v=nNpCA2w4WNU

Os poderes exercidos sobre os corpos na época moderna subjugavam as relações destes com o espaço e tempo vivido ao espaço-tempo medido e confinado das instituições disciplinares. Era necessário, para esses primeiros tempos de industrialização, da formatação de um novo tipo de sujeito, que se adequasse facilmente ao ritmo de trabalho imposto pelo chão das fábricas. A essa urgência alia-se o corpo analisável do homem-máquina, um autômato feito de órgãos, ossos e músculos. Submetidos aos imperativos de transformação e aperfeiçoamento, os sujeitos eram deslocados entre espaços de confinamento e eram constantemente examinados, analisados, entre escolas, fábricas, prisões, hospitais e etc. Eram nesses domínios da disciplina que se produzia uma história para os indivíduos, que de fato se criavam o que hoje entendemos como indivíduos, e que, a partir dessa história, se determinava a norma, e os desvios. Todos esses espaços são instâncias do poder disciplinar, são fábricas que se habilitariam a produzir e moldar corpos dóceis e úteis, e também os indóceis e os inúteis.





É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado. (...) O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente (FOUCAULT, 2004, p. 117 e 118).





Mas atualmente, falamos da passagem da sociedade disciplinar à sociedade de controle, e nesse contexto não é um corpo pronto e acabado que se quer, mas um corpo a que se exige um constante aperfeiçoamento e habilidade para administração de riscos. Novamente, nas sociedades de controle, se trata de um corpo adaptável aos modos de produção – agora em rede, distribuída pelo corpo social como um todo, e não restrita apenas ao local de trabalho. Assim, o investimento do controle também não se reduz mais aos espaços confinados apenas, mas se espalha pela sociedade como um todo. Para Hardt & Negri (2001, p. 42) as sociedades de controle são aquelas nas quais “mecanismos de comando se tornam cada vez mais ‘democráticos’, cada vez mais imanentes ao campo social, distribuídos por corpos e cérebros dos cidadãos”. Segundo Deleuze, na sociedade de controle não se trata mais do molde do corpo (como na disciplina, através de uma série de exercícios de decomposição do gesto no tempo e no espaço), mas de modulações. E, assim, se nessas sociedades passamos por um controle contínuo, que formas despontam para nós como resistências?



O filme Bug (Possuídos, William Friedkin, 2007) relata um caso de paranóia onde um sujeito chamado Peter acredita ter escapado de inteligências militares, que após anos de testes e experimentos, conseguiram implantar nele substâncias quase invisíveis que podem determinar e comunicar a qualquer momento todas as implicações de seu corpo, o lugar em que se encontra e como se encontra. Esse sujeito é apresentado à Agnes por uma das amigas dela. Agnes se apresenta para nós como uma mulher solteira, solitária, independente, viciada e de personalidade forte, cujas sombras do passado, como ex-marido violento e alcoólatra, prestes a sair da prisão, por ter cumprido pena de assalto à mão armada e filho desaparecido, a acompanham todos os dias na hora de dormir. Apesar da força, Agnes também é uma personagem carente e frágil, que ao contato com Peter, um sujeito que não gosta mais de mulheres por ter se cansado das relações sexuais e de dizer saber ver coisas onde ninguém vê, sente-se amparada e completamente envolvida. A história de vida dos dois, contemporaneamente, poderia ser considerada normal. Até que Peter começa a sentir a presença de insetos por todos os locais do quarto de hotel em que estariam. As imagens da relação sexual entre os dois nos são compartilhadas como inserts de trocas de fluídos. Parece que vemos substancias aos milhares: glóbulos, microrganismos e insetos. Serão essas imagens verdadeiras ou construções subjetivas a respeito da vida?





Cada vez mais introjetados, transparentes e diluídos em trocas íntimas e fluidas, os agentes artificiais se misturam com os orgânicos, dissolvendo as fronteiras e tornando obsoleta a antiga diferenciação, visto que ambos os tipos de elementos compartilham a mesma lógica da informação digital. Assim, hoje são criados materiais inéditos, híbridos de ambos os mundos, representados pelos microchips com componentes orgânicos e pelos implantes (SIBILIA, 2003, p. 33).





Se no filme anterior de William Friedkin, O Exorcista (1973), o controle sobre os corpos era exercido pelos espíritos, nessa sua obra o controle passar passa a ser algo mais imanente, no interior dos corpos. “Em outras formações históricas, esse biopoder de dimensões faústicas era administrado por entidades anônimas e transcendentais, tais como Deus, o acaso e as leis da Natureza. Agora, porém, parece ter chegado a vez dos homens. Que homens?” (SIBILIA, 2003, p. 151). O termo “bug” remete a um agente biológico. O pressuposto desses insetos é que ele está internalizado. Está no mais elementar partícula do corpo humano, são agentes a coletar dados, amostras. De fato, para Deleuze, para além do arquivo disciplinar, as sociedade de controle também se caracterizam pelos bancos de dados.



No entanto, além dessa acepção, o termo também remete a uma falha no sistema. Talvez seja mais nesse sentido que Bug adquire mais força e vitalidade. Enquanto as sociedades disciplinares, das máquinas energéticas, estavam assujeitadas ao perigo passivo da entropia e ativo da sabotagem - o tamanco emperrando a fábrica, as sociedades de controle, que operam por máquinas de terceira espécie - de informática e computadores, estão sob o perigo passivo da interferência, e, ativo, da pirataria e da introdução de vírus. “Criar foi sempre coisa distinta de comunicar. O importante talvez venha a ser criar vacúolos de não-comunicação, interrupção, para escapar ao controle” (DELEUZE, 1992, pp. 217-223). O que se quer dizer é que há possibilidades de subjetivação a partir desses mecanismos de controle. No caso do filme, o ato extremo da paranóia levando ao auto-extermínio.



Tanto Peter quando Agnes são apresentados a nós como personagem à margem. Por mais que Agnes tenha um emprego a princípio (que sintomaticamente larga), ambos estão (e ficam cada vez mais) mentalmente incapazes de se incluir nos sistemas produtivos contemporâneos. Ela carrega sua depressão, ele sua paranóia contagiante. Quando, perto do final, um policial surge em cena para avisar Agnes que Peter é um sujeito desequilibrado, que precisa de medicação para ficar sob controle, ela escolhe por não acreditar e por eliminar tal intromissão, matando o policial. A paranóia de Peter nos parece mesmo uma espécie de reação aos anos de controle por medicamentos pelo quais passou. Controle interno, dos próprios processos biológicos, para o tornar apto à viver em sociedade. Talvez o que Agnes e Peter escolheram, no final das contas, de forma radical, seja não se submeter a esse controle, ao que custo que seja. A morte no final de alguma forma como possibilidades (obviamente não-vital) de resistência a uma investida do poder sobre si.




BIBLIOGRAFIA

DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Vozes: Petrópolis, 2004.

HARDT, Michael, NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001.

SIBILIA, Paula. O Homem Pós-Orgânico: Corpo, subjetividade e tecnologia digitais. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2003.
FILMES

O EXORCISTA. William Friedkin (dir.). Estados Unidos, 1973. 1 filme (122min), son., color, 35mm.Título original: The Exorcist. Legendas em português.

POSSUÍDOS. William Friedkin (dir.). Estados Unidos, 2006. 1 filme (102min), son., color, 35mm. Título original: Bug. Legendas em português.

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