sábado, 5 de dezembro de 2009

Surrogates (Substitutos) – Francis Carnaúba



“Surrogates” é um filme de ficção-científica/policial lançado em 2009, baseado na graphic novel do mesmo nome lançada em 2005. A história se passa num futuro próximo onde os avanços tecnológicos da robótica e das ciências neurológicas permitiram o desenvolvimento de um sistema de substituição dos indivíduos por andróides (forma masculina) e ginoides (forma feminina). Os indivíduos são denominados “operadores” e seus robôs são os “substitutos”. Os operadores permanecem em isolamento parcial na segurança e conforto do lar assumindo um estado quase vegetativo enquanto os substitutos saem para o mundo no lugar de seus donos, lógica que altera radicalmente a vivência do cotidiano.

Inicialmente o desenvolvimento dessa tecnologia teria sido imaginado para a otimização da experiência social dos deficientes físicos e doentes, mas eventualmente se torna uma alternativa para preservação da vida humana seja nas cidades quanto nos cenários de guerra, desdenhando o corpo como empecilho, de certa forma repugnante. Uma grande corporação está por trás da tecnologia, a Virtual Self (V.S.I., o “I” é indeterminado, provavelmente a palavra em inglês que significa “Eu”). Seu slogan é “Life... Only Better. Do What you want. Be what you want.” (A vida... só que melhor. Faça o que quer. Seja o que quer).

Os substitutos permitem uma experiência sensorial completa, as pessoas interagem normalmente através deles, mas com muitas vantagens. Os riscos de doenças e acidentes são praticamente eliminados pois todos os danos são sofridos pelos robôs, eliminando assim a dor e o medo da experiência cotidiana e derrubando certas limitações do corpo, quaisquer danos são reparáveis e tudo é aperfeiçoável. Em uma cena o personagem principal precisa experimentar o mundo pelo seu próprio corpo após ter seu substituto destruído, para ele é uma experiência aterrorizante, que quase culmina num ataque cardíaco. Assim a durabilidade das máquinas permite, a certa extensão, a experiência da imortalidade, transcendência, liberdade de todos os riscos do corpo orgânico. A sociedade então assume marcadamente a sua qualidade hedonista.

Os padrões de beleza da sociedade precedente se tornam parâmetro para suas representações robóticas. Alguns operadores possuem versões melhoradas de si mesmos enquanto outros são totalmente diferentes, como o caso de um homem obeso cujo substituto é uma mulher loira e jovem correspondendo ao estereótipo de uma supermodelo. Em outro caso as melhorias estéticas dão conta do trauma de uma mãe que perdeu o filho num acidente de carro, agora ela não precisa mais lidar com as próprias cicatrizes que remetem ao acidente, e assim permanece integralmente em substituição. Alguns tipos são praticamente apagados do cotidiano como os idosos, reafirmando o desejo da longevidade e imortalidade.



Aqueles que abdicam das substituições se excluem ou são excluídos das novas sociedades, vivendo em comunidades isoladas onde os substitutos não são permitidos. Esta exclusão é demonstrada como uma condição de classe, o acesso aos substitutos requer uma boa condição financeira, aqueles que não possuem meios mas querem experimentar certas vantagens da substituição adquirem modelos de segunda categoria, limitados estéticamente. Há também uma carga forte da influência religiosa, uma valorização do corpo idealizado por um criador, um ser divino. Também se vê presente uma valorização da experiência real, da representatividade de um corpo que comunica sua história de vida nos traços adquiridos pelo tempo, conceitos como o caráter que seria a personalidade escrita na fisicalidade, no rosto, os efeitos do tempo no corpo.

As pessoas são mais bonitas e a sociedade é mais segura, ascética. Uma total suspensão do corpo em troca da pureza permitida pelas tecnologias. O frágil vínculo com a matéria orgânica funciona em função dos aparelhos tecnológicos como parte propulsora numa espécie de programação, a robotização da vida pela manutenção de um sistema maior e purificado de sociedade. Corpos reinventados e valorizados pela técnica. A história imagina então as condições para que se possam atingir ideais de beleza sem a manipulação da carne, e estas condições parecem devedoras de uma adequação ideológica pela adequação estética, a questão parece estar no cerne da decisão.

Antes de comprar o seu substituto e desenvolver uma personalidade para ele é preciso abdicar das suas limitações que podem ser os seus valores e suas crenças. Aí parece haver uma falha na percepção dos contras de optar pela mudança, não dá conta da flexibilidade dos indivíduos e das instituições, o filme bate muito forte na questão moral. Mas de certa forma é um olhar sobre o corpo pós-orgânico, digitalizado, e sua manipulação quase mágica num mascarar da dor, como no sacrifício dos processos cirúrgicos que são os nossos meios atuais. O interessante do filme é sua proposta de fazer imaginar um cenário onde a tecnologia age sobre a renúncia do corpo podendo servir aos indivíduos nas muitas possibilidades de construção de suas personalidades e que exista certa impressão mágica sobre esse processo.

A tentativa de renúncia do corpo não é bem sucedida, a narrativa reforça a idéia de uma persistência orgânica. Uma arma é desenvolvida que pode destruir o substituto e seu operador, retornando o elemento do risco e simbolizando uma dependência em relação ao corpo. Em uma reviravolta dramática ao final do filme, o herói consegue com que todos os substitutos sejam destruídos, como uma forma de proteger a todos dos benefícios que os colocavam em estado de uma virtualidade vista como maléfica, demonstrando a influência da problematização do dualismo corpo-mente.

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