domingo, 6 de dezembro de 2009

OS MILÉSIMOS LEVADOS AO EXTREMO - Por Mariana Florito



OS MILÉSIMOS LEVADOS AO EXTREMO
- Quando o os limites do corpo são superados –

Introdução
Atualmente, um dos conflitos morais mais complexos e que tem uma conotação evidente em todas as camadas sociais, uma vez que conta com a influência da mídia, é a questão do doping. Sendo assim, os princípios que permeiam o esporte como o "fair-play", a "ética esportiva", o "ideal olímpico", o "espírito esportivo" passam a ser cotidianamente desconstruídos.
Diversos são os estudos publicados a respeito deste assunto, geralmente buscando esclarecer o que vêm a ser doping sob o pretexto de condená-lo devido a seu caráter ilícito. No entanto, pretendo mostrar o doping na perspectiva do esporte, procurando não me ater a conceitos e definições, tendo assim o questionamento como foco principal.
A primeira substância realmente efetiva de melhora da capacidade de rendimento humano foi a anfetamina, criada por bioquímicos alemães, em 1938, inaugurando assim uma busca incessante pela superação dos limites humanos, denominados no esporte de recordes. São exatamente esses "limites do corpo" que este estudo objetiva questionar. Dentro da lógica do proibido e do liberado o que se pode considerar como válido na quebra destes recordes? E, partindo da lógica de esporte como superação, qual o sentido então de se proibir os recursos que podem contribuir para tal finalidade?
O melhoramento genético, atribuído a mais nova forma de doping no esporte (por enquanto) também endossa os problemas levantados neste estudo. Por que seriam os genes, como um composto "natural" do organismo, considerado doping?
Tecnologia como extensão do corpo
Quando o americano Tan Burke calçou um par de sapatilhas com pregos nas solas e se agachou para a largada dos 400 metros na primeira Olimpíada da Era Moderna, em 1896, em Atenas, na Grécia, seus adversários – que estavam em pé – olharam desconfiados. Mas Burke levou o ouro nos 100 e nos 400 metros. Era inegável que sua postura e as sapatilhas garantiam maior impulso na largada e estabilidade no resto da prova.
Ultimamente temos assistido, a cada competição, uma evolução de performances que, geralmente, é atribuída aos atletas. Mas, os olhares mais atentos percebem que no centro dos principais avanços dos últimos tempos está a informática, que aliada a outras áreas como a medicina, a biomecânica, a farmacologia, tem constituído toda a parafernália tecnológica utilizada na preparação dos esportistas e os equipamentos que eles usam que, de tão perfeitos, parecem extensões de seu corpo.
O ser humano não para de se superar, isto é fato, considerando que as marcas esportivas não são pensadas apenas como limites do esporte, mas como fronteira a serem alcançadas e principalmente superadas – pela humanidade. A maioria dos recordes de algumas décadas atrás estava em marcas que hoje são atingidas por atletas amadores. Uma parte se deve, de fato, a avanços técnicos e melhor condicionamento físico, mas a maior parte está nos avanços tecnológicos.
Hoje, qual será a influência de tecnologias nos recordes que superam limites aparentemente definitivos? E, considerando a conceituação de doping no esporte, como o uso de um artifício, substância ou método capaz de aumentar a performance do atleta ou, a grosso modo, tentativas de superar limites, porquê "essas tecnologias" não endossam à lista de doping? Pelo contrário, seu uso é estimulado quando não vira regra.
Os atletas de hoje, em muitas modalidades, dependem tanto de tecnologias que já vivem situações semelhantes à Fórmula 1 de automobilismo, em que o papel do piloto está próximo de ser o de não atrapalhar o desempenho da máquina. Se pensarmos na conceituação do esporte dentro das quais as formas de doping podem incluir outros tipos de tecnologias, como o equipamento esportivo, se torna difícil racionalizar a diferença ética entre uma câmara de altitude e um doping sanguíneo ou entre um taco de beisebol de alumínio e uma roupa de natação de neoprene.
É possível que grandes atletas, com talento "nato" e aprimoramento por treinamentos espetaculares não atingissem tamanho desempenho se não tivessem a disposição certos equipamentos. Refiro-me a bicicletas aerodinâmicas, tecidos que aceleram a evaporação do suor, calçados que compensam defeitos estruturais no pisar de um corredor, piscinas com "quebra-ondas" que contêm a turbulência provocada pelos nadadores na água, pistas especiais, varas de salto que garantem uma mecânica de impulsão, a roupa de natação “FastSkin” que gerou controversa nos Jogos Olímpicos de Sydney em 2000, entre outros. O conhecimento científico carece de pesquisas a respeito do quanto às performances atuais se devem à evolução do equipamento.
Será que os limites do corpo no esporte devem ser apenas os limites naturais (abro parêntese para alertar sobre a dificuldade de se definir limites naturais do corpo humano), sem nenhum estímulo tecnológico ou químico? Se estes valem até que ponto são considerados um recurso ergogênico liberado ou proibido - doping?
Melhoramento Genético: limites do corpo ou doping?
Uma outra questão que vem levantando discussões frenéticas no âmbito esportivo diz respeito à pesquisa genética no esporte. Segundo Andréa Ramirez, geneticista do Instituto de Biologia da USP, em entrevista a Revista Phorte, essas "pesquisas consistem basicamente na introdução de genes ou células geneticamente modificados nos tecidos humanos com o objetivo de bloquear a atividade de genes prejudiciais, ativar mecanismos de defesa imunológica ou produzir moléculas de interesse terapêutico." E acrescenta que tais pesquisas geraram um conflito, rotulado de doping genético no esporte.
Que os genes interferem na performance de um atleta é certo , até porque, determinadas características físicas são essenciais dependendo do esporte. Mas será que os geneticistas serão capazes de isolar um gene específico do desempenho? Se isso ocorrer, considerando os genes como constituição do corpo humano, estaríamos diante de mais um recurso ergogênico utilizado no esporte ou um doping? Como discernir se a presença de atletas geneticamente modificados terá sido por terapia gênica ou doping genético?
Os argumentos éticos contra o uso de doping no esporte não tem a mesma força quando aplicado à modificação genética. Além disso, seria um erro categorizar melhoramento genético meramente como outra forma de doping, já que é, conceitual e culturalmente, um tipo diferente de tecnologia.
"Não há nada de errado com uso da informação genética para procurar pessoas geneticamente superiores para o esporte de elite"
Presidente do comitê Olímpico Internacional, Jacques Rogge

Quanto a este assunto, a detecção e seleção genética de talentos esportivos, estaria a ciência concretizando o que Hitler pretendia para a humanidade, a eugenia. Seria o risco do uso da tecnologia por uma eventual sociedade totalitária?
A perspectiva de criar um humano que possa correr os 100 metros rasos em 5 ou 6 segundos é uma idéia corrente atual (e do futuro próximo) ridícula no ambiente científico. Igualmente a possibilidade de criar um atleta com capacidade de não se cansar em corridas de longa distância. As autoridades esportivas internacionais já estão começando a assumir essas novas tecnologias sob o termo comum: doping. Assim, as instituições já estão rejeitando o uso da tecnologia genética no esporte antes mesmo de esta ter sido teorizada.
Há quem defenda a aplicação da genética no esporte como um recurso totalmente concebível, já que a elite esportiva está sempre à procura de novos meios de melhorar o desempenho. Contrariamente, outros geneticistas consideram tais aplicações impossíveis, pois os genes são muito complexos para realizar modificações esportivas específicas, considerando este tipo de pesquisa, além de um desperdício de recursos em uma busca fútil, inaceitável.
Recorro a uma reportagem da revista Superinteressante (1996) em que o médico Marcel Bouley, do Laboratório de Ciências da Atividade Física da Universidade de Laval, em Quebec, Canadá, afirma que a instituição, há 10 anos, tenta determinar a configuração genética do superatleta e que "é um trabalho demorado, pois depende da seleção de atletas e da análise de todos os genes do DNA deles". Continuando a entrevista diz ainda que os resultados das pesquisas devem começar a aparecer em dez ou quinze anos. Bem, estes anos já se passaram (visto que a reportagem foi concedida em 1996), a probabilidade da "máquina de ouro" canadense Michael Phelps, ser fruto ou "mérito" destas pesquisas é grande.
É importante reconhecer que atletas geneticamente modificados nada mais são do que o próximo estágio do uso de outros meios tecnológicos, que estão lentamente aumentando as possibilidades do que o homem pode fazer.
Por enquanto, já que só se pode julgar certas pesquisas com o conhecimento que se tem do presente e não com a previsão do que venha a ser o futuro (parafraseando o médico Marcel Bouley, citado anteriormente) ficamos com a conclusão das conseqüências deste tipo de pesquisa apenas realizadas no meio animal: quem há de se esquecer da gripe do frango ou da doença da vaca louca? Quem garante que estes vírus não surgiram em alguma manipulação genética para um "melhoramento" de tais animais? Recentemente "criaram" a gripe suína. E quando essas conseqüências começaram a se apresentar a nível humano como serão denominados os nossos atletas ou as nossas doenças? Alguém arrisca um palpite?
Esporte = a saúde?
A mídia, repetidamente, demoniza os atletas que usam drogas. O que acontece é que o sistema esportivo tenta preservar uma imagem mercadológica de pureza. A convivência com drogas, sejam elas legais ou não, parece ser uma necessidade no esporte de alto rendimento, dada às exigências competitivas as quais os atletas são submetidos, além da pressão exagerada para se superar os limites humanos, criando assim, um clima em que a utilização do doping é até influenciada, pode-se dizer.
A questão sobre o que é legal e o que é proibido, o jogo entre o licito e o ilícito, foi levantado nos tópicos anteriores, a intenção agora é buscar entender os motivos reais e racionais da proibição do doping no esporte.
Analisando os objetivos do esporte performance e as drogas que são criadas para colaborar com esta performance fica difícil entender esta lógica. Outro fator que contribui para a incompreensão do caso é que os grupos farmacêuticos internacionais que produzem as substâncias dopantes são os mesmos que dominam as tecnologias de elaboração dos testes antidoping. O uso do doping pode ser visto como uma grande fonte de lucro para os laboratórios e indústrias farmacêuticas, pois são eles que produzem não só as substâncias ilícitas – que se tornam mais lucrativas ainda porque são ilegais – mas porque, ao mesmo tempo, são eles também que dominam as tecnologias dos instrumentos e reagentes que compõem os testes antidoping.
Para um sistema esportivo que se estabelece na performance e na busca incessante pela melhoria do desempenho do atleta, o doping pode ser considerado "uma estratégia racional", já que o aumento do rendimento é uma condição intrinsecamente ligada á própria natureza da competição esportiva.
Um simples milésimo de segundo entre uma conquista de uma medalha de ouro e uma de prata pode significar para um atleta de alta competição o recebimento de milhões de dólares em prêmios e quantias enormes de dinheiro para os respectivos patrocinadores. E é por esta razão, absurda e desumana, que milhares de campeões usam o doping para atingir níveis de competitividade acima das suas próprias capacidades “naturais”.
O corpo se torna então manipulável, uma vez que o uso de algum tipo de droga, seja ela para recuperar-se mais rápido da fadiga, tirar as dores, metabolizar melhor e mais velozmente, parece ser imprescindível para o esporte de alto rendimento.
Os escândalos sobre doping não envolvem apenas os atletas, nos bastidores, permeia também e, principalmente, os patrocinadores, os dirigentes e instituições esportivas, a indústria farmacológica, médicos, enfim toda uma máfia que geralmente a mídia não mostra, pois nenhum patrocinador quer ver seu nome envolvido em escândalos. E mais uma vez os interesses econômicos tem definido os rumos do esporte contemporâneo e seus subterfúgios.
Diversos são os posicionamentos que condenam o uso do doping no esporte, pois o que se tenta mostrar é que o esporte é a salvação para todas as mazelas da sociedade, uma referência de sucesso. No entanto, o que não é mostrado é que, se a legislação vigente que se julga preventiva e purificadora do esporte não parece atingir seus objetivos, pois sua existência pressuporia alta capacidade de controle, de modo que as ocorrências de doping diminuíssem, o que não tem acontecido.
Outro argumento, que diz respeito à saúde, não fica difícil ser derrubado, tendo em vista tudo o que foi discorrido até aqui. Já que são elementos não naturais, tornam-se prejudiciais a saúde, como se o esporte de elite, em si mesmo não fosse cheio de riscos e problemas para a saúde.
Um último argumento seria de que o doping não pode ser usado sob pretexto legal, físico e moral. Embora pareça inquestionável, devemos reconhecer que as formas de burlar as regras têm privilegiado, principalmente, os atletas de maior recurso (patrocínio). Mas é da natureza do esporte competitivo, onde, para cada um que ganha inúmeros outros perdem, confrontar sua própria moral, dadas às injustiças. Portanto, o uso de recursos e métodos adicionais não altera a essência do prejuízo dos que perdem.
Considerações
A discussão de fundo deste estudo tentou mostrar que o doping no esporte deve ser analisado sob os conceitos do que entendemos o humano, O rendimento e, portanto, os mecanismos artificiais de melhoria da performance humana só serão aceitáveis quando estiverem "a serviço do organismo vivo".
As drogas, além de outros recursos, são produtos do próprio desenvolvimento científico em "prol" do esporte, então, temos a ciência como principal responsável pela sofisticação do doping e seu caráter prematuro em relação aos testes. Como seria inconcebível barrar os avanços da ciência, o mais producente no momento é a (in) formação crítica dos espectadores.
Neste sentido percebemos que a mídia tem um papel fundamental no fornecimento de conhecimento e discussão para as pessoas que estão direta ou indiretamente ligadas ao assunto, pois, uma vez que sua intervenção na vida humana tem ocorrido efetivamente, seria interessante que ela preparasse essas pessoas para enfrentar tais polêmicas de forma consciente e responsável. Pois, embora os raciocínios que vão de encontro ao uso do doping no esporte sejam plausíveis, parecem não constituir razões suficientes para avaliar a situação em toda sua complexidade.
Por fim, todos os argumentos levantados e pensados, ao longo deste estudo, sobre a questão do doping no esporte e o que o envolve levaram-me a acreditar que o limite do ser humano deve ser a sua própria integridade e o respeito à sua dignidade o homem é corpo e não apenas tem um corpo. Qual é o seu limite?

Referências Bibliográficas:
AMÍLCAR, Heitor e WORCMAN, Nira. A fabricação do atleta de ouro. Reportagem da Revista SuperInteressante, Julho de 1996;
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LENT, Roberto. “Não é mais ficção”. (Entrevista realizada por Daniela Pinheiro). Revista Veja. São Paulo, 27 de setembro de 2006.
SIBILIA, Paula. “Ser humano”, “Natureza”, “Biopoder”. In: O homem pós-orgânico: Corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Ed. Relume Dumará, 2002.
SOUZA COUTO, Edvaldo. “Corpos dopados. Medicalização e vida feliz”. In: RIBEIRO, Paula Regina Costa; SILVA, Méri Rosane Santos e GOELLNER, Silvana Vilodre. Corpo, gênero e sexualidade. Composições e desafios para a formação docente. Rio Grande (RS), Editora FURB (Universidade Federal do Rio Grande), 2009, pp. 43-53.
RAMIREZ, Andréa. Pesquisa genética no esporte e o conflito suscitado pelos atletas geneticamente modificados. In: Informe Phorte, nº 24, 2009;
REVISTA EXPRESSO. Doping o escândalo encoberto. São Paulo, p. 1 – 2, 22-Fev-1999;

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