sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Nada Além da Verdade - Por Francisco Ferraz

O game show testa os nervos e a integridade de cada participante que está disposto a revelar seus segredos em rede nacional para ganhar o prêmio de R$ 100 mil. Ao ser aprovado, o competidor passa pelo temido polígrafo, a máquina da verdade, onde responde a 100 perguntas. Destas, 21 são escolhidas para serem feitas no palco pelo apresentador Ratinho”. (informações retiradas do site do SBT)



Nada Além da Verdade, game show exibido pelo SBT, é a versão brasileira do mundialmente famoso Nothing But The Truth, produzido por Howard Schultz. No jogo, o participante é previamente submetido a 100 perguntas ligado ao polígrafo. Já no palco, 21 dessas perguntas são refeitas e novamente respondidas; a cada resposta a máquina, interpretada por uma voz grave e precisa, não sem antes gerar um clima de absoluto suspense com iluminação e trilha sonora, diz se o participante disse a verdade ou a mentira.
Antes de entendermos os mecanismos que o polígrafo utiliza para retirar do individuo “a verdade”, é interessante que façamos o esforço de recordarmos outro método para o mesmo objetivo e que antecede historicamente a este: a hipnose. A hipnose, disseminada como prática da psicanálise no começo do século XX, baseia-se na premissa de que existe, antes da consciência, no interior do indivíduo um “lugar” que armazena informações e que as intenções e receios não podem alcançar: o subconsciente. Portanto, é onde supostamente estaria a verdade. Esse lugar só pode ser alcançado se o paciente estiver em estado de sono, hipnotizado, não podendo assim interferir nas verdades inscritas no seu subconsciente. Acreditava-se que a verdade estava guardada no interior mais profundo de cada um.

O polígrafo, também conhecido como detector de mentiras, é um aparelho que mede e grava registros de diversas variáveis fisiológicas enquanto um interrogatório é realizado. Por causa de sua precisão, a máquina é usada por várias polícias do mundo, como o FBI e a KGB. O aparelho monitora as reações de uma pessoa, como alterações das batidas do coração, pressão arterial e respiração. De acordo com esses dados, pode-se determinar a veracidade de seu depoimento” (informações retiradas do site do SBT).

Também chamado de exame de detecção psico-fisiológica de fraude, o polígrafo é um aparelho ligado a um indivíduo através de sensores para medição de pulso e arterial, um tubo ajustado no tórax para observar o ritmo da respiração, eletrodos que medem as variações elétricas e sensores de movimento nas pernas medem a contração involuntária de músculos, enquanto são realizadas perguntas. As reações do interrogado são registradas em um gráfico. Supostamente, essas reações podem confirmar ou desmentir as respostas.
Podemos observar o movimento do lugar onde se inscreve a verdade sobre o indivíduo. Esses dois exemplos, hipnose e polígrafo, mesmo que tratados aqui de forma superficial, são interessantes para percebermos uma mudança de compreensão a respeito do corpo. O corpo que antes, para obtenção da verdade, devia ser colocado em estado vegetativo, ou seja, desconsiderado, agora precisa ser rigorosamente monitorado, pois é justamente nele onde se vai obter a verdade.
O polígrafo não é um movimento isolado; exemplifica toda uma transformação da utilização do corpo: de templo da interioridade – pele que esconde a subjetividade –, para pôster da individualidade – pele que evidencia a subjetividade. Na “consciência” da pele: piercings, tatuagens, plásticas, e toda sorte de alterações que representam o que se é (ou como se quer ser visto); na “subconsciência” da pele: estímulos, reações, contrações involuntárias e respostas que representam o lugar onde as intenções não podem alcançar, portanto, lugar da verdade.
Todo esse movimento coloca o corpo em evidência. Colabora com uma nova compreensão do corpo no mundo. O corpo é meio e fim. No corpo se encontram o objetivo e o subjetivo. Para o corpo se compra, se constrói, se inventa. Para manter o corpo constantemente saudável, criaram-se técnicas para observação permanente, que, posteriormente, tornaram-se técnicas para desvendar a verdade sobre o sujeito. Assim vão se construindo novas noções de indivíduo, que são conseqüências dessa nova preocupação ininterrupta com o corpo.
O programa de TV Nada Além da Verdade reitera essa compreensão do corpo quando premia com 100 mil reais o participante que responder somente a verdade quando essa verdade será revelada pelo corpo. Traz para a TV aberta a idéia da máquina que pode distinguir com precisão verdade e mentira. Ao interrogado que, segundo o polígrafo, mente, não é dada sequer a chance de argumentar sobre sua resposta. Introjeta-se, portanto, essa lógica. As respostas do corpo são codificadas e passam a significar a verdade que não pode ser confiada ao discurso do indivíduo.
Exemplo dessa lógica introjetada foi a movimentação dos blogs sobre o caso Isabella Nardoni. Blogueiros se uniram no esforço de pressionar o poder público para que fosse realizado o teste do polígrafo com os acusados pelo crime, já que não haviam provas concretas que desvendassem o caso. Ou seja, as respostas do corpo são entendidas como prova mais precisa do que a própria confissão.
Porém, a estrutura do polígrafo e seu modo de interferir e atuar no indivíduo, fazem parte de uma lógica já ultrapassada de “conhecimento do homem”: Lógica industrial, que atua mecanicamente no corpo.

As técnicas de electrofisiologia utilizadas para seguir a atividade neuronal, baseiam-se nas mudanças do potencial de membrana que ocorrem em neurônios ativados. Técnicas de imagiologia cerebral por varrimento (scanning) baseiam-se nas mudanças do metabolismo energético que ocorrem nos neurônios em atividade”.Nikos Logothetis

O polígrafo, assim como as máquinas industriais, possui probabilidade de erro maior do que o aceitável para se enquadrar na mais recente construção da individualidade – além de interferir “direta e agressivamente” no corpo; a nova lógica é digital e acética. Através de scanners cerebrais, maquinas digitais programadas para mapear a atividade dos neurônios, cientistas identificam desejos, medos, preferências, e por fim, verdades. Essa identificação é realizada através da leitura de neurônios que se iluminam em determinada situação e, posteriormente, a transformação dessa leitura em imagem digital.
Essa nova compreensão da individualidade – corpo compreendido como programação digital, capaz de ser compreendida e decodificada através de outra máquina programada – vai alguns passos além. As mais novas técnicas de imagialogia cerebral, pretendem “prever as decisões do cérebro 7 segundos antes de serem tomadas”. Segundo o pesquisador John-Dylan Haynes “as decisões são arduamente preparadas pela atividade cerebral e boa parte deste trabalho já foi feito pela consciência.”, logo, através do monitoramento das atividades neuronais, é possível saber não só a verdade sobre o indivíduo, mas o caminho percorrido para construção dessa verdade 7 segundos antes. Outra vez as técnicas que hoje são utilizadas no intuito de “mapear” e decodificar o cérebro, tem em sua origem a preocupação permanente em manter o corpo saudável.



O neuropesquisador Lawrence Clark, do Massachusetts Institute of Technology, acaba de apresentar um protótipo de scanner cerebral portátil que, nas palavras do infoespecialista John Whatainou, "pode vir a trazer sérios problemas aos sistemas bancários eletrônicos". Com o scanner, ladrões podem ler as senhas bancárias armazenadas na cabeça das pessoas. "A era do sigilo acabou", diz o especialista.” (ANIMOT.com)

A idéia de um scanner cerebral portátil colabora duplamente para esse novo movimento de compreensão do corpo através de técnicas. Ao mesmo tempo que digitaliza o corpo, caminha-se para uma técnica cada vez mais acética, sempre buscando a interferência mais “limpa” e menos agressiva no corpo. Essa dupla função acaba por ajudar na naturalização tanto da prática como do conceito. Vemos questões humanas que foram amplamente trabalhadas ao longo da história por diversas linhas de pensamento – mitologia, filosofia, psicologia, sociologia – sendo reinterpretadas e supostamente “resolvidas” pela “verdade” da imagem do scanner cerebral.

A impulsividade de criminosos violentos crônicos parece ter como base uma predisposição cerebral. Anátomo-fisiologicamente, quando comparado a indivíduos normais, o cérebro de criminosos possuem alterações fisiológicas no córtex pré-frontal e no sistema límbico. Efeitos inibitórios sobre partes do sistema límbico provém de vias hipotalâmicas e também do complexo amigdalóide. Acredita-se que pessoas violentas possuem uma desrregulação entre o córtex cerebral e o sistema límbico propriamente dito. Lesões observadas no córtex pré-frontal de feridos de guerra mostraram ter grande relevância nos seus comportamentos agressivos. No entanto, o ambiente vivido na guerra deve ser considerado como um fator que predispôs o indivíduo a agressividade. No entanto, em diversos indivíduos com lesões frontais mas que vivem em ambientes “normais” há uma apresentação muito semelhante de agressividade.” (Monika Lück e Daniel Strüber colaboradores da liga Hanseática de Cientistas em Delmenhorst, Bremen, Alemanha)

Concluímos que a interioridade é reconstruída pelo “lado de fora”, não somente a subjetividade representada no corpo, mas toda individualidade. O indivíduo não se relaciona mais com um interior transcendente, ou com qualquer idéia de alma. Está, portanto, todo ele no corpo, na pele, e, finalmente, nas imagens digitais – códigos binários – de atividades neuronais criadas por programações.

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