sábado, 5 de dezembro de 2009

Uma geração de indivíduos superinteligentes X Um exército de Topeiras - Natalia Bolsoni




“Eu tinha que me preparar para um trabalho e resolvi tomar um comprimido. O resultado foi incrível. Consegui estudar 12 horas sem parar.”

“Era uma época agitada na minha vida. Eu fazia faculdade de direito, trabalhava num escritório e ainda estudava para concursos públicos. Comecei a usar um remédio que o neurologista havia receitado para a minha tia. Não tive nenhum efeito colateral e senti um belo aumento na minha concentração. Na época das provas, aumentava a dose.”

“Fiquei mais inteligente, tudo o que eu estudo é mais bem aproveitado. Graças ao remédio, passei no vestibular de química e virei um dos melhores alunos da classe. Agora decidi prestar vestibular para economia. Consegui uma bolsa em um cursinho depois de ficar em 1° e 2° lugar em vários simulados. Tenho consciência de que outros estudantes também usam o remédio. Mas espero que ele não se popularize. Afinal, se todo mundo tomar, como vou me destacar?”

“Esses são relatos reais (...) de pessoas normais, sem nenhum problema no cérebro. Mas decidiram tomar medicamentos tarja-preta, desenvolvidos para tratar disfunções neurológicas – mas que, em pessoas saudáveis, podem provocar uma espécie de turbo mental: intensificar a atenção, a concentração, a memória ou certos tipos de raciocínio. Ou simplesmente ajudar a pensar mais, por mais tempo, sem cansar. E quem não quer isso, afinal?”

Esta é a introdução da matéria da revista Super Interessante, Pílulas da Inteligência. Ela é suficiente para levantarmos várias questões no que diz respeito às pressões impostas pela sociedade em que vivemos.

A instauração de uma cultura fáustica - em que somos exigidos a sermos melhores que os outros, mais capazes, mais felizes - nos faz estar em permanente estado de mudança, sempre buscando superar nossos limites.

Nesse contexto, a busca por uma pílula que potencializa as ações cerebrais humanas se justifica numa atitude “inerente” à natureza do ser humano no que tange a essas pressões externas, que são interiorizadas, relacionadas a sua vontade de melhorar a qualidade de vida. Tanto é que, segundo a matéria:

“Um grupo de neurologistas da Califórnia, da Pensilvânia, de Cambridge e Harvard escreveu um manifesto (...) que defende que certos medicamentos, que hoje são traja-preta (de venda e uso controlado), sejam totalmente liberados (...) porque, ‘a engenhosidade humana nos deu meios de aprimorar nosso cérebro, com invenções como a escrita, a imprensa e a internet. Essas drogas deveriam ser encaradas da mesma forma: são coisas que a nossa espécie inventou para melhorar a si mesma’.”

Se pensarmos por este viés, a verdade é que a maior parte das pessoas já consome alguma substância para turbinar a cabeça. Tomar café ou um antigripal já são ações suficientes para provocar alguma alteração no cérebro. Além disso, podemos acompanhar vários exemplos ao longo da história em que se pesquisou e testou substâncias capazes de nos tornar mais espertos e de melhorar nosso desempenho intelectual.

A revista lembra dos “soldados do Império Romano comiam alho puro porque acreditavam que lhes dava mais inspiração (...). Em outros povos, o costume era beber cerveja, (...), na expectativa de que o álcool conferisse aos soldados a bravura necessária para combater. (...) O escritor Honoré de Balzac, no início do século XIX, tomava café aos montes para produzir (...) e Freud acreditava que a cocaína pudesse ser um auxílio para a mente (...).”

No entanto, essas ações corriqueiras do dia a dia e esses relatos históricos são aceitos pela nossa sociedade. O que nos leva a crer que, daqui a alguns anos essas pílulas da inteligência serão de uso comum de todos, sem nenhum problema moral. Será?

Estas drogas fazem parte da lógica do capitalismo atual. É preciso estar bem disposto e concentrado para passar um dia inteiro trabalhando. É preciso ter energia para chegar em casa depois e estar pronto para cuidar dos filhos e das tarefas de casa. É preciso ter fôlego para acordar cedo e ir para a academia e se manter saudável. É preciso ter bom humor para sair à noite, tomar todas e bater papo com os amigos. Afinal, com tantas tarefas, quem agüenta um dia-a-dia desses sem nenhum “complemento”?

Por essa razão e por todo o consumo e estratégias que estão embutidas, surgem cada vez mais companhias farmacêuticas que estão focadas nestas drogas que potencializam nossas reações e não mais interessadas em curar as patologias do corpo. Se pensarmos dessa forma, podemos encarar que elas estão acreditando que estamos permanentemente doentes, que as patologias que preocupavam antes, estão cada vez menos importantes e a busca por um ser humano mais potente, mesmo que por meios que não são sua própria superação física e intelectual, passa a ser iminente.

Com isso, podemos dizer que estamos chegando a uma época em que nossos corpos estarão constantemente dopados. Não há mais tempo para certas inquietações psíquicas e a necessidade de medicamentos que não causam efeitos colaterais é notada.

Contudo, há um ponto que tende a ser esquecido nesse frenesi da ultrapassagem dos limites do corpo e da mente: “todas as drogas, tanto as que já existem quanto aquelas ainda em desenvolvimento, têm uma característica em comum – elas simplesmente intensificam o funcionamento do cérebro, ou seja, dão um pouco mais de potência para que ele faça o que já sabe. Os remédios não conferem novas habilidades à mente” (SUPER INTERESSANTE). Sendo assim, não podemos nos ater a este tipo de pílula da inteligência como a solução para a criação de uma geração de indivíduos superinteligentes. Podemos correr o risco de terminar essa corrida com um exército de topeiras, uma vez que ainda não conhecemos de fato os riscos deste tipo de medicamento a longo prazo e uma vez que deixaremos de lado a naturalidade do corpo para atingir a artificialidade imposta pela sociedade de consumo e informação.

Referências:

Revista SUPER INTERESSANTE (Ed. 271/Nov 09) - Matéria de capa. A Pílula da Inteligência; pág. 62 a 71 – link para download: http://ebooksgratis.com.br/revistas-mensais-e-mensais/revista-superinteressante-novembro-de-2009-a-pilula-da-inteligencia/

SIBILIA, Paula. O Homem Pós-Orgânico: Corpo, Subjetividade e tecnologias digitais

COUTO, Edvaldo Souza. Corpos dopados. Medicalização e Vida Feliz

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