quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Mil e Uma Identidades – Por Vivian A. de Sousa

“Nosso corpo é o exemplo mais destacado do ambíguo”.

William James


Ciência, tecnologia e biologia formam no cenário pós-moderno um complexo e admirável tripé. O reconhecimento do sucesso de promissoras descobertas capazes de revolucionar a vida do homem garante a ascensão de sua credibilidade.

Sabe-se que a evolução tecnológica alcançada pela humanidade de maneira feroz nos últimos séculos tem conseqüências ainda imensuráveis a olho nu diante da maior parte da sociedade.

Mediante povos de culturas tão diferentes que habitam este planeta, a influência de novas e refinadas tecnologias ganham os mais variados formatos e modulam-se de acordo com seus conceitos e hábitos.

Recentemente este tripé passou a vincular-se com mais intensidade a área da saúde e do bem estar físico dos seres humanos. Seu desenvolvimento foi capaz de criar soluções para doenças e disfunções do organismo a fim de mantê-lo o menos “danificado” possível.

A tendência a exteriorização do que se é fortalece esse processo e ganha ainda mais vigor com a ciência revirando o campo estético. Aparelhos e linhas de produtos desenvolvidos a base do que há de mais moderno no ramo, não moldam só curvas, mas principalmente personalidades.

Vive-se cada vez mais o agora, nada pode ser deixado pra depois, a insatisfação é descartada do dicionário contemporâneo, e assim são criados medicamentos com a fórmula instantânea da felicidade que ultrapassa a barreira do real.

Academias e centros estéticos acompanham a aceleração progressiva do cotidiano de quem vive nas grandes cidades, com o desafio de manter esses corpos de pé e “saciados”.

O hedonismo e o narcisismo são palavras chaves dessa reconfiguração humana, surge outra moral e o poder aparece em instâncias diferentes, à liberação do corpo desperta um resultado paradoxal sobre o comportamento do homem, a repressão não existe mais, a “tortura” agora é uma livre escolha e o que torna o poder forte é o mesmo motivo que antes o condenava.

Os corpos dóceis a que Foucault se refere em seus livros e análises, doutrinados pela sociedade disciplinar, com movimentos exatos e ritmados, seguiam os parâmetros que o contexto histórico exigia na época, a Era da Informação, do homem pós-orgânico, de surtos tecnológicos parece apenas possuir demandas diferenciadas, onde cada um tem paradoxalmente liberdade para doutrinar-se.

A propaganda abaixo é de um Centro Estético Colombiano e está entre as melhores do mundo eleita por um site na internet. Elaborada em 2007, a empresa colocou modelos circulando por bares e boates com camisetas escritas “antes” nas costas e “depois” na parte da frente onde estão seus novos e turbinados seios.

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No caso, o silicone que já é muito comum hoje em dia serve apenas como uma demonstração de tudo o que ainda está por vir. Cirurgias reparadoras, cremes milagrosos, tratamentos instantâneos que tornam o sonho de qualquer um real.

Outro exemplo é a propaganda da sandália Ipanema estrelada pela modelo mais famosa do mundo, a brasileira Gisele Bündchen, com o slogan “Brasil a flor da pele”, mostra um corpo que vai sendo todo tatuado, como se fosse apenas um desenho de fácil traçado sem a carga definitiva que esta tem na realidade.

É como se diante daquele corpo nu fosse possível se inventar e se reinventar quantas vezes desejar. A idéia é poder ser o que quiser. Mas é principalmente poder deixar de ser. Se transformar à medida que for necessário e possível e for múltiplo em prol de sua individualidade. O comercial enfatiza o desejo de liberdade do ser humano de fazer suas próprias escolhas.

A análise de Francisco Ortega em seu livro O corpo incerto é contundente: “O corpo tornou-se o espaço da criação da utopia, um continente virgem a ser conquistado.”

O ímpeto de tornar visível quem somos, ou o que gostaríamos que fôssemos traz certa nebulosidade em torno do que se transforma nossa essência diante de tantas alterações físicas.

A incessante busca pela perfeição, retratada não só pela ciência, mas também pelas ferramentas midiáticas de programas de correção de imagens retocam a realidade corrigindo as mais milimétricas imperfeições até que estas se tornem imperceptíveis e adequadas ao padrão de campanhas publicitárias, capas de revistas ou comerciais de TV.

“Dentro” e “fora” são conceitos que passam a se misturar no que diz respeito às dimensões físicas e subjetivas do ser humano. Corpo e alma, natural e artificial, interior e exterior. Não há mais limites claros entre o ponto de partida e a linha de chegada. Ser tudo, sem ser pra sempre, num eterno renascer de nós mesmos.



Quando tenhamos aliviado o máximo possível as servidões inúteis, evitado os infortúnios desnecessários, restará sempre para preservar as virtudes heróicas do homem, a longa série de males verdadeiros, a morte, a velhice, as doenças incuráveis, o amor não compartilhado, a amizade recusada ou traída, a mediocridade de uma vida menos terna que nossos sonhos: todos os infortúnios provocados pela natureza divina das coisas.

Marguerite Yourcenar








Bibliografia:

Foucault, Michel – Vigiar e Punir

Nietzsche, Friedrich – Genealogia da Moral

Sibilia, Paula – O homem Pós- Orgânico: Corpo, subjetividade e tecnologias digitais

Gardt, Micheal e Negri, Antonio – Império

Ortega, Francisco – O Corpo Incerto

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